Por mais que o governo atual se tenha omitido em rememorar os 15 anos do Real e que o temor da inflação esteja distante do cotidiano das pessoas, muita gente escreveu nas páginas econômicas dos jornais sobre o significado do controle da inflação desde os “longínquos” tempos de 1994. Não cabe, portanto, voltar ao tema.
Desejo chamar a atenção para conquistas que ainda não fizemos ou para as que não me parecem asseguradas. Os progressos na construção de um país mais estável e melhor - depois do cataclismo inflacionário do final dos anos 70 ao início dos 90 - começaram antes de 1994. A organização do Tesouro Nacional, o fim do orçamento monetário, a abertura comercial, a renegociação da dívida externa em outubro de 1993 e o início da renegociação das dívidas dos Estados e municípios foram passos prévios indispensáveis à estabilização. Da mesma forma como foi importante o saneamento financeiro que levou ao fechamento de cerca de cem bancos sob as regras do Proer e do Proes, na época tão vilipendiados por setores da esquerda e da direita que tinham olhares antiquados. A redemocratização do Brasil deu o marco de referência no qual esses processos ocorreram. As modificações foram feitas às claras, com muita luta no Congresso e nos tribunais, sem “tapetão”.
Até que ponto a estabilidade está garantida? Depende: se o tripé da política econômica (metas de inflação, câmbio flutuante e Lei de Responsabilidade Fiscal) for mantido e levado adiante com consistência, pouco haverá a temer. Mas isso ocorrerá? Pelo que se vê nos últimos meses, há riscos: gastos crescentes, sobretudo onerando a folha de pagamentos, com arrecadação cadente, são sinais inquietantes. Eles não são inquietantes em si mesmos, pois bem poderiam ser justificados, como quer o governo, pelo momento difícil da economia. Então, por que a dúvida?
A dúvida decorre da falta de modificações comportamentais, que não dependem só do governo, mas para as quais a ação pública tem efeito catalisador. Voltou a se instaurar no Brasil um certo desdém quanto à gravidade de “pequenos” desvios que, pouco a pouco, podem tornar-se uma avalanche. Isso não ocorre só na economia. Nela, a aceitação pela opinião pública de um “pequeno” aumento dos gastos com pessoal, por exemplo, embora postergável, apoia-se na ideia de que “é preciso dar emprego”, ou de que “sem um governo com mais funcionários como atender às necessidades sociais do País?” Em si, os comentários seriam justificáveis. Porém a reiteração de práticas fiscais menos rigorosas, e não só no caso de pessoal, mas também de facilidades na concessão de subsídios a empresas, debilita a higidez de um sistema público que nunca foi muito controlado.
Dito assim, de forma quase banal, pode parecer que faço tempestade em copo d?água. Por trás dos exemplos triviais, entretanto, está a verdadeira preocupação: a paralisia do espírito reformista, a leniência com a corrupção, a inversão na relação entre “baixo” e “alto” clero no Congresso - ou mesmo a sua identidade em práticas condenáveis - estão a indicar que a velha cultura corporativista-clientelista está estrangulando o impulso de modernização que se fez sentir com mais força a partir da implantação do Real. Hoje prevalece uma política de concessões continuadas, que agrada aos beneficiários, sejam eles pobres ou ricos, sendo facilmente assimilada e aplaudida. Temo que o pós-Real, tal como está sendo vivido, encubra uma volta ao passado, em vez de ser um passo adiante na modernização do País.
Mesmo noutro aspecto, crucial para a consolidação dos ganhos do Real, o da política de desenvolvimento econômico, há sinais inquietantes. Sempre foi aspiração nacional ver o crescimento sustentável da economia. Posso dizer o quanto me decepcionaram os efeitos negativos das crises financeiras internacionais sobre as taxas de crescimento. O mesmo ocorre agora com o presidente Lula, que lastima a queda dos 5% de crescimento do ano passado para o ponto quase zero de 2009. Mas isso é efeito de ciclos e conjunturas. O que independe deles é o “estilo de desenvolvimento”. Quando se acrescenta o adjetivo sustentável, não se quer dizer apenas que tenha continuidade no tempo, pois os ciclos continuarão a ocorrer e a afetar as taxas de crescimento. Quer dizer, isso sim, que não seja predatório dos recursos não-renováveis nem do meio ambiente em geral.
Ora, em matéria de crescimento econômico, estamos assistindo no pós-Real a uma volta ao passado. O espírito dos anos 70, do “milagre econômico” dos governos militares, voltou à cena: um “desenvolvimentismo produtivista”, que não busca a compatibilidade entre crescimento econômico e a geração de novas formas de energia, muito menos de restrição às emissões de gases-estufa. Quase voltamos ao “bendita poluição” dos anos 70, que significava mais fábricas e menos miséria. Se na época essa visão já não se justificava, menos ainda hoje.
Essa captura do novo pelo velho, esse renascer no Brasil de uma cultura do desperdício, do patrimonialismo e da ocupação predatória do território vêm juntos com a neutralização de forças renovadoras, agora cooptadas. É o caso do próprio PT, que trocou a luta contra os resquícios do Estado Novo na legislação sindical e a bandeira da ética na política pelo que há de mais arcaico em nossas práticas políticas. Daí que falar de “reformas” passou a ser politicamente incorreto; e crescer a qualquer preço, prova do sucesso.
Não quero ser pessimista, menos ainda em época de celebração. Mas, como alertava o conselheiro Acácio, as consequências vêm sempre depois. Temo, reitero, que o pós-Real esteja sendo vivido como se, assegurada a estabilização, bastasse “pau na máquina” e o futuro do País estaria garantido. Entretanto, há muita construção ainda a ser feita e boa parte dela diz respeito às instituições e ao comportamento. Quando se trata de mudança cultural, se pelo menos não engatinhamos, retrocedemos. O ideal seria avançar muito mais.
Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República
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